A grande mentira que contamos a nós próprios, parece-me, é a memória. Mimamos lembranças como bebés, estragamo-las com mimos.
Frases Recentes
Escolher a metáfora óbvia é uma forma retorcida de originalidade. Aceitar a primeira escolha é o contrário do meu instinto e, hoje, acredito que os meus instintos têm pouca razão.
Havemos sempre de lamentar o tanto que esquecemos, o tanto que perdemos quando aquilo que procurávamos era o caminho em frente, era seguir, crescer, construir.
Como as palavras, os nossos nomes também estão sujeitos a ser moldados pela intenção e pelo tom. A intenção é o lugar onde nascem. O tom é a forma como se desenvolvem. Dependendo da intenção e do tom, muitas vezes somos os nossos nomes, noutras vezes não.
A minha vida real. Sinto dores concretas pelas horas em que não vi os meus filhos crescer. Sou previsível, embora humano. E reúno os momentos de ternura que tivemos, como peças de um puzzle incompleto. Olho-os ao longe, aqueço-me neles como numa lareira.
Construí uma prisão com aquilo que julgava libertar-me. Descobri, tarde demais, que existem muros feitos de planícies.
Tinha certezas imóveis e, no entanto, agora tenho certezas muito mais imóveis. São estátuas para a eternidade. E, no entanto, a eternidade onde estiver ri-se de mim. Aquilo que é certo, factual, inquestionável, é que devia ter percebido antes, devia ter ouvido as vozes que tentavam avisar-me daquilo que era evidente, daquilo que é evidente agora.
A liberdade, por si só, é um conceito vago e amoral.
As ideias envelhecem dentro dos livros, da mesma forma que envelhecem dentro da cabeça. Na cabeça, antes do mundo, e nos livros, depois do mundo, as ideias podem envelhecer e morrer ou, tantas vezes, podem envelhecer e só nesse momento serem reconhecidas como ideias, só nesse momento nascerem de facto.
Confundimos os nossos segredos com a nossa identidade, confundimos as nossas fraquezas conosco próprios e, sem que ninguém saiba, sem que ninguém possa saber ou ajudar-nos, transformamo-nos efetivamente nos nossos segredos e nas nossas fraquezas. A verdade existe no oposto desse medo. Quanto mais damos, mais nos permitimos ser. Quanto mais damos, mais somos.
Segurar a pequena mão dele, sentir os seus dedos pequenos a agarrarem a minha mão é uma justificação óbvia para tudo, para a vida. Vale a pena nascer, crescer, vale a pena a adolescência inteira, todos os sacrifícios, vale a pena a responsabilidade, vale a pena sair pelo desconhecido e estar preparado para o impossível, vale a pena ler obras completas, passar dias fechado apenas a ler, vale a pena comer sopa, aprender a fazer sopa, vale a pena lavar loiça para ter a oportunidade de segurar-lhe a mão.
De vez em quando, certas conversas dirigem-se para um ponto em que se fala das primeiras recordações. Para que uma conversa toque esse ponto é preciso que exista uma certa intimidade e que haja tempo suficiente para se chegar a um assunto tão importante para cada um de nós e tão desinteressante para todos os outros.
Os livros, esses animais opacos por fora, essas donzelas. Os livros caem do céu, fazem grandes linhas retas e, ao atingir o chão, explodem em silêncio. Tudo neles é absoluto, até as contradições em que tropeçam. E estão lá, aqui, a olhar-nos de todos os lados, a hipnotizar-nos por telepatia. Devemos-lhes tanto, até a loucura, até os pesadelos, até a esperanças em todas as suas formas.
Penso: se o castigo que me condena se fechar em mim, se aceitar o castigo que chega e o guardar, se o conseguir segurar cá dentro, talvez não tenha de suportar novos julgamentos, talvez possa descansar.
Penso: os homens são ovelhas que não dormem, são ovelhas que são lobos por dentro.
Penso: talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros.
Os homens são uma parte pequena do mundo, e eu não compreendo os homens. Sei o que fazem e as razões imediatas do que fazem, mas saber isso é saber o que está à vista, é não saber nada. Penso: talvez os homens existam e sejam, e talvez para isso não haja qualquer explicação; talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique.
Porque a minha vontade tem o tamanho de uma lei da terra. Porque a minha força determina a passagem do tempo. Eu quero. Eu sou capaz de lançar um grito para dentro de mim, que arranca árvores pelas raízes, que explode veias em todos os corpos, que trespassa o mundo. Eu sou capaz de correr através desse grito, à sua velocidade, contra tudo o que se lança para deter-me, contra tudo o que se levanta no meu caminho, contra mim próprio. Eu quero. Eu sou capaz de expulsar o sol da minha pele, de vencê-lo mais uma vez e sempre. Porque a minha vontade me regenera, faz-me nascer, renascer. Porque a minha força é imortal.
Todos temos um lugar onde a vida se acerta. Cada mundo tem um centro. O meu lugar não é melhor do que o teu, não é mais importante. Os nossos lugares não podem ser comparados porque são demasiado íntimos. Onde existem, só nós os podemos ver. Há muitas camadas de invisível sobre as formas que todos distinguem. Não vale a pena explicarmos o nosso lugar, ninguém vai entendê-lo. As palavras não aguentam o peso dessa verdade, terra fértil que vem do passado mais remoto, nascente que se estende até ao futuro sem morte.
O meu trabalho integra-se na literatura portuguesa contemporânea, tenho consciência dela. Mas acho que quem escreve tem de manter distanciamento desse meio, envolver-se é criar uma teia de relações que não ajuda a algo fundamental: a independência e isenção. O grande compromisso tem que ser com a literatura. Não com o meio literário.